Tinha 37 de idade, era solteiro e tão mal comportado quanto as circunstâncias e o berço lho permitiam ‑ algumas coristas e bailarinas de fama equivalente a todas as suspeitas, ocasionais empregadas de balcão da Baixa, duas ou três virtuosas senhoras casadas de sociedade, e uma muito falada e disputada soprano alemã que estagiara três meses em São Carlos e de que constava não ter sido o único frequentador. Era, pois, um homem dado a aventuras de saias mas também a melancolias. Aos 22 anos deixara o curso de Direito em Coimbra mas, para grande desgosto do seu já falecido pai, a sua projectada carreira na advocacia não fora além de um curto estágio no escritório de um reputado advogado de Coimbra, do qual saíra esbaforido e para sempre aliviado daquela suposta vocação. Regressara à sua Lisboa de sempre, onde se ocupara de dispersos ofícios, até ter herdado do pai a posição de sócio principal da Companhia Insular de Navegação: três navios, de cerca de doze mil toneladas cada um, transportando carga e passageiros entre a Madeira e as Canárias, o arquipélago dos Açores e as ilhas de Cabo Verde. A Insular tinha os escritórios situados num prédio ao fundo da Rua do Alecrim, os seus trinta e cinco empregados espalhados pelos quatro andares do edifício pombalino e ele próprio instalado num amplo salão, com duas janelas rasgadas sobre o Tejo, que vigiava com a atenção de um faroleiro, ao longo dos dias, dos meses, dos anos. Ao princípio, Luís Bernardo criara a ilusão de que dali controlava uma armada atlântica e quase uma parte dos destinos do mundo: conforme os telexes ou as comunicações‑rádio dos seus únicos três navios iam chegando, assim ele ia actualizando o seu paradeiro com pequenas bandeirinhas que espetava no imenso mapa de toda a costa ocidental da Europa e de África, que preenchia a parede do fundo. Depois, aos poucos, foi‑se desinteressando do paradeiro diário do Catalina, do Catarina e do Catavento, deixou de espetar diligentemente as bandeirinhas no mapa, embora continuasse a comparecer religiosamente às partidas e chegadas dos navios da Insular, na Rocha Conde de Óbidos. Só uma vez lhe ocorrera, por espírito de descoberta ou por dever de ofício, embarcar num dos seus navios: fora de ida e volta até ao Mindelo, em São Vicente, numa viagem tormentosa e desconfortável, para encontrar uma terra que lhe parecera desolada e absolutamente despida de qualquer coisa que pudesse interessar a um europeu do seu tempo. Explicaram‑lhe que aquilo não era bem África, antes um pedaço de lua caído ao mar, mas ele não se motivou a ir mais além, ao encontro dessa tal África de que lhe chegavam tantos relatos extasiados.
Ficara‑se para sempre pelo escritório da Rua do Alecrim e pela casa em Santos, onde vivia sozinho com uma velha governanta que herdara de casa dos pais e que sentenciava, volta e meia, que «o menino precisa de se casar», além de uma ajudante de cozinha, uma moça da Beira Baixa, feia como um porco‑espinho. Almoçava invariavelmente no seu clube de sempre, no Chiado, jantava no Bragança ou no Grémio ou pacatamente em casa, fazia serões de cartas com os amigos ou visitas sociais em casas de família, ocasionalmente o São Carlos, festas no Turf ou no Jockey. Era bem relacionado, espirituoso, inteligente, bom conversador. Tinha a paixão do estado do mundo, que acompanhava com a assinatura de uma revista inglesa e outra francesa e era, correspondentemente, fluente nas duas línguas, coisa rara na Lisboa desse tempo. Interessara‑se pela Questão Colonial, lera tudo sobre a Conferência de Berlim e, quando a questão ultramarina começou a ser objecto de apaixonadas discussões públicas, ainda como sequela do Ultimatum inglês, publicara dois artigos no Mundo, que foram amplamente citados e discutidos pela sua análise de uma rara frieza e equilíbrio, por entre o furor patriótico e antimonárquico dominante nos espíritos, em contraste com a aparente condescendência do Senhor D. Carlos. Defendia ele um colonialismo moderno, de matriz mercantil, centrado na exploração efectiva das coisas que Portugal tivesse capacidade para levar a cabo, através de empresas vocacionadas para a actividade em África, geridas com espírito profissional e «atitude civilizacional», e não mais «entregue aos desígnios dos que aqui não sendo ninguém, lá se comportam como sobas, piores do que os que encontraram, e não como europeus, idos da civilização do progresso, ao serviço do seu país».
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Descrição de Luis Bernardo
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Foi então que Ann o conheceu. Num domingo à tarde, nas enfadonhamente inglesas tardes do «AII India Cricket Club» de Dehli, onde as conversas eram exactamente as mesmas desde há duzentos anos, só variando a geração ‑ que não os nomes de família dos personagens envolvidos nas conversas. Ao contrário de David, Ann vinha de uma família que frequentava o «All India Cricket Club» de Dehli há quatro gerações sucessivas. Mas para Ann, o futuro não passava pela Índia, mas sim pela Inglaterra. Para ela, o coronel Rhys‑More reservara um futuro diferente e especial, com algum Lord de passagem pelas índias, a quem a beleza, a inteligência, a educação perfeita e as qualidades de sociedade da filha não deixariam, quando a oportunidade se apresentasse, de atrair e de largamente compensar a insuficiência do seu dote e a ausência de título de nobreza familiar. Quatro gerações de antepassados dedicados ao serviço da índia e dois irmãos alistados no Exército que combatia pelas fronteiras do Raj nos traiçoeiros desfiladeiros do Khyber Pass, assim como a sua virtude e os seus dons naturais, faziam dela, aos olhos do coronel e da sua esposa, um muito aceitável e recomendável contrato de casamento. Ann não fora educada para conhecer e amar a índia, mas sim a distante Inglaterra onde jamais pusera o pé. Tinham‑lhe ensinado que a terra onde nascera e crescera, onde se fizera mulher, era apenas um lugar de passagem em direcção às ruas, aos restaurantes, aos salões, à vida dessa mítica cidade de Londres, que só conhecia das revistas que o coronel assinava com a devoção inquebrável de um servo que queria estar a par das notícias sobre o amo.
Tudo isso se desmoronou num dia. No dia em que ela conheceu David Jameson. A sua programada distância, o seu aconselhado recato desabaram, como um castelo na areia, sob o efeito da fúria, da ambição, da vida, que jorravam do olhar, da voz, dos gestos, da descontrolada veemência que irradiava dele. Em cinco horas que conversaram, dançaram, jantaram e tentaram em vão fingir‑se distraídos com outras coisas ou outras pessoas, ela ficou a saber mais da índia do que tudo o que tinha aprendido em vinte e cinco anos de vida nessa terra.
Ele era um jogador: um jogador compulsivo de cartas, um vício largamente alimentado nas noites do clube dos oficiais ingleses em Bangalore, e um jogador em relação à própria vida. A Índia tinha‑lhe cimentado o gosto pelas grandes jogadas, as grandes apostas, a fé na cartada do destino e o gosto pelo risco e pelas atitudes de tudo ou nada. Era como se não houvesse tempo a perder, como se tudo devesse ser jogado em cada cartada, em cada oportunidade, em cada brecha que os outros abriam: tinha pressa de viver, de forçar as coisas a acontecer, em lugar de ficar à espera que a fortuna lhe batesse à porta. Era isso que fazia a sua atracção, a necessidade compulsiva que tantas mulheres sentiam de se aproximar dele, o que desarmava os adversários, o que deixava os outros ‑ os que concorriam com ele na carreira, no amor ou na mesa de jogo ‑ sem saber como aparar os seus golpes, como acompanhar as suas apostas. Foi isso que lhe pôs Ann aos pés, nessa mesma noite. Quando ele a levava a casa, num rickshaw coberto puxado por um sikh, a quem ele tinha dado uma discreta ordem para não se apressar, e, de repente, lhe segurou a mão, mergulhou fundo nos olhos dela e lhe disse: «podemos seguir as convenções e ficar por aqui, agora, ou podemos começar já a não perder tempo. De uma maneira ou de outra, você é a mulher da minha vida e nunca mais me vou embora da sua vida. A escolha é sua e é a de adiar ou não o que é inevitável», ela percebeu que ele tinha razão, que era inútil estar a adiar o que já não tinha mais solução nem fim à vista. Assim, ela rendeu‑se, entregou nessa noite quente e húmida de Dehli tudo o que tinha acumulado em vão de ensinamentos e cautelas, de reservas e planos de futuro. Foi como se tivesse nascido verdadeiramente nessa noite e tudo o que estava para trás na sua vida não tivesse sido mais do que um inútil exercício de previsão contra o destino. E ele colheu tudo. Não com a delicadeza de quem colhe uma flor num jardim, mas com a voracidade de quem devora o jardim inteiro.
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Em menos de dois meses, e sob a ameaça de um escândalo latente, Ann Rhys‑More e David Jameson estavam casados. E, com o passar dos meses, a tão temida gravidez pré‑nupcial, que tinha aterrorizado o coronel seu pai, revelar‑se‑ia um perigo sem fundamento: David era estéril, como o revelaria uma consulta médica de rotina. A sífilis, que tinha contraído no bordel do marajá de Bangalore e que julgara curada sem nada mais do que a recordação das dores lancinantes que padecera e dos tratamentos humilhantes a que tivera de se expor, afinal deixara para sempre uma marca incurável no corpo e no amor‑próprio. Apesar de tudo, foi Ann quem melhor suportou essa notícia: «não troco o homem que amo e que mais admiro por um pai em potência» ‑ explicou a si própria, às amigas e aos pais. Essa foi a primeira vez que Ann prometeu a si mesma que não deixaria nunca o marido.
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